Os debates em torno da proposta de emenda à constituição (PEC) 37, que atribui competência para investigação criminal às polícias e, portanto, tira o poder de investigação criminal dos Ministérios Públicos Estaduais e Federal e de outras instituições, e da PEC 33, que submete algumas decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ao poder Legislativo, como as súmulas vinculantes e as decisões proferidas em ações diretas de inconstitucionalidade (ADI) e ações declaratórias de constitucionalidade (ADC), têm causado indignações em diversos setores da sociedade.
A PEC 37 é conhecida como a “PEC da impunidade”, já que o Ministério Público tem atuação na investigação de crimes cometidos por agentes públicos e organizações criminosas, além da função de realizar o controle externo da polícia. Por outro lado, a PEC 33 está sendo vista como uma PEC que tira o poder de julgar do STF ou um “golpe à democracia”.
As duas PECs têm sido apontadas como uma revolta do parlamento contra o Poder Judiciário, em sua Corte Suprema, e contra o Ministério Público, que possui prerrogativas de poder apesar de, para muitos juristas, não ser considerado um poder. Estamos, portanto, discutindo atribuições e competências. Poder. Mas é mais que isso. Está havendo uma disputa pelo poder inclusive entre os parlamentares e o Executivo, com participação do Judiciário. Daí as questões envolvendo o projeto de lei sobre os novos partidos, fundo partidário e mudança de legenda.
Como está se falando em poder, é retomada a teoria da organização dos poderes. Até porque um dos maiores argumentos que tem embasado os críticos das PECs é a separação destes poderes, prevista na Constituição da República, que sequer pode ser sujeita à emenda constitucional. Mas qual sua relação com tudo isso?
Montesquieu – que escreve antes da revolução francesa e é considerado o “pai” da moderna teoria dos poderes – tem sido utilizado como argumento teórico nos debates. Mas na organização de poderes que o francês apresenta o poder judiciário é politicamente nulo. Ainda, ele previa claramente a interferência de um poder no outro. Montesquieu era nobre, herdou do tio uma fortuna e passa a ser o presidente do parlamento. Para ele, o governo moderado era a monarquia, em virtude da existência de corpos moderados: a nobreza é um deles. E o local da nobreza era a Câmara Alta do legislativo. Não há um poder judiciário forte em sua teoria, sequer uma separação: Montesquieu organiza os poderes, mas não separa. Por exemplo: ele defende que os nobres sejam julgados pela Câmara Alta do legislativo (logo, pelos nobres), mas argumenta que o rei não poderia julgar, criticando o fato de Luís XIII ter julgado um nobre. Seus escritos mais avançados quanto ao Direito envolvem a defesa de garantias individuais e processuais especialmente no julgamento de crimes. Ele cita Beccaria.
Se o Poder Judiciário foi crescendo politicamente de importância e participação, isso se deve ao ativismo que ocorreu nos Estados Unidos. As origens de um ativismo progressista são verificadas em decisões da Suprema Corte que passam a questionar as antigas relações e os antigos precedentes. Uma das decisões mais marcantes é a que declara inconstitucional a segregação racial em escolas públicas.
É nessa origem progressista e pela possibilidade de se efetivar direitos através do Judiciário que sua atuação ativa pode contribuir para a sociedade. Todavia, não há certeza de que ele será um defensor de garantias e direitos quando pensamos em sua atuação institucional. O conservadorismo, a corrupção e os conflitos políticos também se instalam em suas cadeiras. O Judiciário é um palco de divergências diante dos diferentes valores que seus membros possuem – reflexo das diferenças da própria sociedade. O STF sofre inúmeras influências, tanto dos demais poderes e seus membros como da opinião pública. Ele não é a “última palavra”, suas decisões estão inseridas num contexto e só serão no sentido da concretização de direitos se encontrarem espaço – e pressão – para isso.
Da mesma forma, o Ministério Público. Sua atuação combativa contra condutas que afetam a sociedade, como a corrupção, tem se mostrado um meio importante de identificá-las. Mas muitas de suas ações penais e investigações foram contra setores desprivilegiados da sociedade e mesmo contra movimentos sociais e de estudantes. Uma investigação criminal precisa de regras claras. Se há um questionamento no tocante a quem iria realizar o controle externo da polícia, cabe saber, então, quem iria controlar e fiscalizar o Ministério Público.
E o que está fazendo o parlamento ao querer que decisões do Judiciário sejam a ele submetidas? Reforçando seu poder e diminuindo o do outro. Mas isso é feito num contexto em que o Judiciário, de um lado, proferiu decisões inovadoras e, de outro, começou a se apresentar como um “salvador” do sistema brasileiro – quando não é e nem deveria ser.
Na teoria de Montesquieu, no parlamento estão os nobres – Câmara Alta – e os representantes do povo – Câmara Baixa. Na apropriação realizada pelos federalistas norte-americanos, estariam os representantes dos estados – Senado – e do povo – Câmara. Tal qual no Brasil. A discussão gira em torno da representação e de seus critérios.
Isso é o mais intrigante. Membros do Judiciário e do Ministério Público não são eleitos. Membros do legislativo são. É o povo que escolhe. E por que razão a tendência atual, no Brasil, em se confiar mais naqueles membros do que nesses eleitos? O que está acontecendo com nosso sistema político e com o sufrágio universal?
Na França, o sufrágio universal começa a ter força no golpe de Louis Bonaparte, que percebe que é melhor, para se manter no poder, estabelecer uma relação pessoal com cada um dos seus eleitores do que com partidos organizados. A manipulação de eleições e o personalismo vão ganhando adeptos. No Brasil, o sufrágio universal – juntamente com uma democracia recente, que vem após um período de ditadura militar, de uma dura repressão contra os críticos do sistema e que tem em sua história relações coronelistas que não foram superadas – mostrou que é e não é apenas um mecanismo de escolha de representantes: é, porque, no fim das contas, a função do sufrágio universal acabou sendo apenas escolher os candidatos; e não é, porque ele mantém essas antigas relações de poder, sem questioná-las.
Esse mecanismo de escolha de candidatos não permite mudanças significativas nas relações de poder. Evidente que há membros no parlamento que, tal qual no Judiciário e no Ministério Público, são comprometidos com a questão social. Mas essa organização de poder, por ser poder e por estar instalada em uma sociedade que não rompeu com as antigas relações – ainda que possa ter apresentado avanços – reproduz valores arcaicos. Tanto o tempo na televisão dedicado aos partidos como a distribuição do fundo partidário reforça a manutenção no poder dos que já estão.
A questão não é uma crise de representação política, essa “crise” é inerente a esse sistema. A complicada relação entre eleitores e eleitos, o precário sistema de prestação de contas, as dificuldades em se ter acesso ao que é feito pelo legislativo (e pelos demais poderes) combinam-se e, em certo modo, são consequência, de uma organização econômica, política e social que oprime os sujeitos e as classes subalternas em suas relações de trabalho, dificultando o debate político e a conscientização.
Se o legislativo é composto por tantos corruptos, por pessoas que defendem seus interesses e de sua classe, se a representação tem nos conduzido à elaboração de leis vinculadas a esses interesses, se deputados e senadores ocupam cadeiras de importância para o país com formação contrária ao que se espera deles (refiro-me, também, à Comissão de Direitos Humanos e a seu pastor presidente), isso é consequência da articulação e doutrinação realizada por setores conservadores e reacionários da sociedade, que se aproveitam do sistema instalado e que se esforçam para mantê-lo.
Por outro lado, é consequência da desorganização dos setores mais críticos. Ou seja, das dificuldades que os movimentos sociais e as organizações críticas ao sistema possuem de se organizar, de conscientizar, de elaborar propostas e políticas públicas capazes de encontrar respaldo social. Se vemos essa briga de poderes – olhando para cima – é porque a atividade de base e de formação não está sendo bem realizada. O verdadeiro poder soberano – do povo, dos subalternos, dos trabalhadores – é o que vem sendo sistematicamente usurpado pelos outros poderes.
Esse argumento de “separação” tem escondido os verdadeiros argumentos que estão em questão. Se os três poderes vindos da Idade Média se mantém dessa forma na sociedade contemporânea é porque eles reproduzem as antigas relações e, principalmente, porque há quem lucre com eles.
Fonte: Revista Forum