Partidos secundários se conformam com a função impolítica de vendilhões de apoio
José de Souza Martins* - O Estado de São Paulo
O peculiar modo como se deu o desenvolvimento político do Brasil, a partir da sociedade escravista que fomos durante largo tempo, impregnou nosso sistema político de anomalias que tolhem nosso caminho para a democracia. Sobretudo porque aqui não é incomum que partidos se oponham à política enquanto meio de expressão democrática da vontade coletiva.
Um compreensível fetichismo do voto cerca nossa concepção de eleições, na suposição, nem sempre correta, de que votar é democratizar. Não há como instituir democracia sem voto, mas há como ter voto e não ter democracia. Ainda nestes dias, ouvi de colegas, nos corredores do recinto em que se realizou a Reunião Anual da Anpocs (Associação Nacional de Pós-graduação em Ciências Sociais) amargas e preocupantes considerações sobre como se manipulam os cenários e as circunstâncias eleitorais em nossas universidades. Tanto no meio estudantil quanto no meio docente, para simular maiorias e anular a vontade eventual das maiorias verdadeiras. Uma cultura do golpismo se implantou no País e se disseminou por diferentes instâncias de uma sociedade que, após duas décadas de autoritarismo, estava sedenta de democracia. Ditadura ruim é a dos outros.
Não temos, na verdade, larga e consolidada tradição de voto. No período colonial, votava uma minoria, os chamados homens bons, puros de sangue e de fé, por um sistema que combinava eleição e sorteio. As câmaras municipais, que tinham composição completamente diversa da de hoje, listavam nomes e os encerravam em diferentes pelouros de cera de abelha que eram sorteados na ocasião própria de escolha da nova câmara. Não era incomum que os designados para as funções do bem público procurassem evadir-se das obrigações. Acabavam a elas forçados sob penas gravíssimas, a mais comum das quais era a multa e o encarceramento na enxovia, verdadeira pocilga municipal, por 30 dias. O oposto de hoje, em que os numerosos candidatos a edil mostram-se ansiosos pelo assento na câmara, e pelas mordomias correspondentes, com exceção talvez daqueles que, em número não pequeno, como nestas eleições e em muitos municípios, surpreendentemente não obtiveram nenhum voto. Supostamente, nem sequer votaram em si mesmos.
No Império, o voto estamental herdado da dominação colonial, o que distinguia os chamados homens de qualidade dos seres servis e de trabalho, e a eles circunscrevia os limitados direitos políticos de então, foi regulado e modificado pelo quantitativo. Qualificavam-se os eleitores e os candidatos em função de seus cabedais, numa gradação que ia da máxima riqueza nas eleições gerais a cabedais menores nas eleições locais. No limbo do sistema eleitoral diminuto ficavam os escravos e os ínfimos em geral, categoria na qual, na prática, se incluíam as mulheres. Mas, ao menos, passaram a existir os partidos políticos, na verdade dois, o Liberal e o Conservador, dando certa direção ideológica à manifestação da vontade política dos poucos que a ela tinham direito. Alternavam-se no poder na estranha dialética que nos governaria pelos tempos vindouros e de certo modo até os dias de hoje: os liberais (que nos tempos atuais têm nomes esquisitos, como o de socialistas, revolucionários, radicais, menos o de liberais) propõem as mudanças políticas e os conservadores (que também têm nomes esquisitos, como o de sociais, liberais, democráticos, trabalhistas) as executam. No fundo, e não estou fazendo ironia, aqui a direita parece ser de esquerda e a esquerda parece ser de direita. Trastrocam-se e ninguém reclama.
A democracia socialmente restritiva avançou pela República. Só lenta e gradualmente estendeu os direitos políticos a categorias que ficaram deles excluídas desde o início do regime, como os pobres, os analfabetos, as mulheres (que só puderam votar a partir de 1932, mais de 40 anos após a proclamação da República). Só com a Constituição de 1988 todos os brasileiros, a partir dos 16 anos de idade, passaram de fato a ter direito de voto.
Um fenômeno, que se observa sobretudo a partir da redemocratização de 1946 e se revigorou na redemocratização de 1984, é a proliferação de partidos políticos sem perfil ideológico ou doutrinário nítido. Mais associações de interesses na loteria do poder do que propriamente na representação política do povo. O que parece ser sadia indicação de democrática pluralidade de ideias tem se revelado muito mais antidemocrática falta de ideias. Tornou-se mais importante ser votado sem ganhar eleições do que ganhá-las. A política de coalizões é a principal evidência dessa tortuosa via da governação, o partido eleito convertido em refém dos partidos intersticiais e secundários que se conformam com a função impolítica de parasitas do poder, vendilhões de apoio como se viu no caso do mensalão. A arquitetura partidária já é montada para descumprir as funções propriamente eleitorais e políticas. Aqui, partido e política se opõem, o que, no fundo, regula nossos desapontamentos e desacertos.
*É SOCIÓLOGO, PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE FILOSOFIA DA USP, AUTOR, ENTRE OUTROS, DE A POLÍTICA DO BRASIL LÚMPEN, MÍSTICO (CONTEXTO) - O Estado de S.Paulo